“A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons
rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem
estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência
como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos
neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da
grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela
parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é
feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem
os estorva no falar, no comer ou no beber.
Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia
alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das
orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás,
uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de
um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E
andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas
não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui
igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem
vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por
estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e
nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa.
Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar
ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e
começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos
dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim
mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também
houvesse prata.
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo;
tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali.
Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase
tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que
espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis,
mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa
provaram, logo a lançaram fora.
Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não
gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não
beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas
dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e
enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o
colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria
dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender,
porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.
Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem
maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras
delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das
cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E
lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.
Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar
a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as
naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças – ancoragem dentro tão grande,
tão formosa e tão segura, que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e
naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta
nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias
que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu
arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça
vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos braços,
seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo
degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar
com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau
Coelho.
Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de
duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós
levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os
pousaram, mas não se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os
que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais;
nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram
um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga;
e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do rio, entre umas
moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o degredado
com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e o levou até lá. Mas logo
tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham
já nus e sem carapuças.
Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar
para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam
alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis.
Não que eles de todos chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os
barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau
Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de
maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles
arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que
homem lhes queria dar.
Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos
mais.(...)
Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a
barbárie deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém.”
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