“Em vias de nos ocuparmos
dessa possibilidade, topamos com uma asserção que é tão espantosa que queremos
nos deter nela. Segundo tal asserção, uma grande parte da culpa pela nossa
miséria é de nossa chamada cultura; seríamos muito mais felizes se desistíssemos
dela e retornássemos às condições primitivas. Eu a chamo de espantosa porque –
seja como for que se defina o conceito de cultura – é certo que pertence
justamente a essa mesma cultura tudo aquilo com que tentamos nos proteger da
ameaça oriunda das fontes de sofrimento. Como foi que tantos seres humanos
chegaram a esse ponto de vista de surpreendente hostilidade à cultura? Penso
que um descontentamento profundo e prolongado com o respectivo estado de
cultura preparou o solo sobre o qual, em certas ocasiões históricas, surgiu uma
condenação. Acredito reconhecer a última e a penúltima dessas ocasiões; não sou
erudito o bastante para seguir toda a série delas ao longo da história da
espécie humana. (...) Descobriu-se que o ser humano se torna neurótico porque não
é capaz de suportar o grau de frustração que a sociedade lhe impõe a serviço
dos ideais culturais, e disso se concluiu que suprimir ou reduzir
consideravelmente essas exigências significaria um retorno a possibilidades de
ser feliz. Soma-se a isso ainda um fator de desilusão. Ao longo das últimas gerações,
os homens fizeram progressos extraordinários nas ciências naturais e nas suas
aplicações técnicas, consolidando o domínio sobre a natureza de uma maneira
impensável no passado. Os detalhes desses progressos são de conhecimento geral,
e não é necessário enumerá-los. Os seres humanos têm orgulho dessas conquistas
e têm direito a tanto. Mas eles acreditam ter percebido que essa
recém-adquirida disposição sobre o espaço e o tempo, essa sujeição das forças
naturais, a realização de um anseio milenar, não eleva o grau de satisfação prazerosa
que esperam da vida, que essa disposição sobre o espaço e o tempo não os
tornou, segundo suas impressões, mais felizes. Dessa constatação, deveríamos
nos contentar em extrair a conclusão de que o poder sobre a natureza não é a
única condição da felicidade humana, assim como não é a única meta dos esforços
culturais, sem derivar disso que os progressos técnicos não possuem valor para
a economia de nossa felicidade. Alguém poderia objetar: não é um ganho positivo
de prazer, um aumento inequívoco do sentimento de felicidade, se posso ouvir
com a frequência que quiser a voz do filho que mora a centenas de quilômetros
de mim, se pouco depois que o amigo desembarcou posso ficar sabendo que tudo
correu bem na longa e cansativa viagem? Não significa nada que a medicina tenha
conseguido reduzir tão drasticamente a mortalidade infantil e o risco de
infecção das parturientes, e que tenha até conseguido aumentar em muitos anos a
duração média da vida do homem aculturado? Além desses benefícios, que devemos
à tão invectivada época dos progressos técnicos e científicos, ainda podemos
mencionar muitos outros; mas neste ponto se faz ouvir a voz da crítica
pessimista, advertindo que a maioria dessas satisfações segue o modelo daquele
“prazer barato” recomendado por certa anedota. Esse prazer é obtido quando,
numa noite fria de inverno, se coloca a perna nua para fora dos cobertores, recolhendo-a
em seguida. Se não existissem ferrovias que superassem as distâncias, então o
filho nunca teria deixado a cidade natal e não se precisaria de telefone para
ouvir a sua voz. Se não houvesse a navegação transoceânica, o amigo não teria
empreendido a viagem marítima e eu não precisaria do telégrafo para acalmar
minha preocupação por ele. De que nos adianta a diminuição da mortalidade
infantil, se justamente isso nos obriga a uma contenção extrema na geração de
filhos, de modo que, em geral, não criamos mais crianças do que nas épocas
anteriores ao império da higiene, ao mesmo tempo em que colocamos nossa vida
sexual no casamento em condições difíceis e provavelmente contrariamos a
benéfica seleção natural? E, por fim, de que nos adianta uma vida longa se ela
é penosa, pobre em alegrias e tão cheia de sofrimento que só podemos dar as
boas-vindas à morte,
saudando-a como libertadora?
(...) Basta-nos, portanto, repetir que a palavra “cultura” designa
a soma total de realizações e disposições pelas quais a nossa vida se afasta da
de nossos antepassados animais, sendo que tais realizações e disposições servem
a dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação das
relações dos homens entre si.”
Sigmund Freud, O mal estar na cultura.
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